A comunicação é uma das áreas mais afetadas nas pessoas com Transtorno do Espectro Autista. O atraso na fala é provavelmente o sinal de alerta mais conhecido para autismo e uma das motivações mais frequentes na busca de avaliação para as crianças mais novas.
Mas nem todo atraso de fala é autismo e nem todo autista tem atraso na fala, certo? Por isso, conhecer bem os vários aspectos da comunicação humana é fundamental para uma avaliação adequada e para distinguir condições clínicas que podem se confundir. O encaminhamento da criança para terapias que vão beneficiá-la de verdade depende em grande parte da precisão dessa avaliação.
Fala
A fala pode ser entendida como um componente da linguagem, que, por sua vez, pode ser entendida como um componente da comunicação. Um problema em um desses níveis não necessariamente significa um problema no outro, embora estejam intrinsecamente relacionados, como pode ser ilustrado por alguns exemplos.
Larissa tem 8 anos e apresenta dificuldades em se fazer entender. A produção dos sons da sua fala é muito comprometida. Apesar disso, ela tem boas habilidades de linguagem: entende tudo que dizem a ela e inclusive se expressa muito bem na escrita, com sentenças longas e complexas, além de ser capaz de usar gestos e expressões faciais para comunicar o que sente.
A produção da fala pode ser afetada por problemas estruturais ou motores que atingem os órgãos que produzem o som (disartria). Geralmente, casos assim também são acompanhados por outros prejuízos físicos ou neurológicos (ex.: paralisia cerebral). O desenvolvimento da fala também é afetado quando a percepção do som está alterada (desordem fonológica), como ocorre na surdez. Em outros casos, a criança consegue pronunciar bem sílabas isoladas ou palavras curtas, mas não palavras mais longas ou sentenças. É o que chamamos dispraxia verbal do desenvolvimento, que é uma situação que envolve tanto dificuldades no planejamento motor (controle neuromuscular) quanto fonológicas. Toda criança com problemas na fala precisa passar por exames de acuidade auditiva e investigação do seu histórico em relação a dificuldades de sucção, mastigação ou babar.
A disfluência (gagueira) e as alterações de prosódia (ritmo da fala, tom de voz, inflexões da voz para dar ênfase a algumas palavras ou mudar a conotação da frase) também são consideradas alterações da fala. Até 47% dos indivíduos verbais no TEA apresentam alterações na prosódia.
Linguagem
Matheus, 6 anos, não tem nenhuma dificuldade em pronunciar palavras com clareza. Entretanto, suas habilidades de linguagem são limitadas: a construção de frases é imatura e simplificada, com vocabulário pobre e pouco domínio gramatical. Ao invés de “Mãe, estou com sede. Me dá um copo de água?” pode elaborar apenas “Quer água”. Mesmo assim, embora com sentenças curtas e restritas, o objetivo de transmitir a mensagem desejada é alcançado com sucesso.
A linguagem pode ser descrita como um complexo sistema de comunicação, no qual ocorrem emissão e recepção de informações (linguagem expressiva e receptiva). A linguagem oral é a mais utilizada na comunicação humana. A construção plena da linguagem oral envolve o domínio de quatro níveis: o fonológico (a distinção dos sons de letras e sílabas que vão compor as palavras), o semântico (atribuição de significado às palavras), o sintático (a ordenação das palavras formando uma sentença coerente) e o pragmático (o uso da linguagem com propósito comunicativo, dentro de um contexto social). A linguagem expressiva de um indivíduo é geralmente mais fácil de ser avaliada que a receptiva, porém déficits na linguagem receptiva podem causar problemas de aprendizagem, interação social e comportamento e merecem toda atenção.
Identificamos um Distúrbio Específico de Linguagem (DEL) quando a criança apresenta desenvolvimento normal das demais áreas, exceto da linguagem. É essencial diferenciar dos casos em que há déficit auditivo. Outro diagnóstico diferencial é a Síndrome de Landau-Klefner, uma condição em que a criança desenvolve a linguagem normalmente durante os primeiros anos e depois ocorre uma deterioração dessas habilidades principalmente da compreensão da fala.
Comunicação
Pedro, 5 anos, é capaz de produzir frases complexas, fluentes e bem articuladas, porém sem alcançar uma comunicação eficaz para interagir socialmente. Na hora da roda na escola infantil, enquanto seus colegas, a pedido da professora, relatam o que fizeram durante o final de semana, interrompe-os a todo momento, contando tudo que sabe sobre planetas e espaço sideral.
Num sentido amplo, a comunicação envolve muito mais que o domínio da fala e da linguagem. O conteúdo daquilo que se diz tem que estar dentro de um contexto de troca entre duas ou mais pessoas, tem que ser funcional. Basta imaginar uma situação mais extrema, como um delírio psicótico para entender o que chamamos de funcional: a pessoa pode dizer frases completas e inteligíveis, mas sem coerência ou significado para os outros. Em situações não tão extremas, pode ser difícil para alguns profissionais reconhecer a falta de coerência ou funcionalidade de um discurso. A criança fala tão bem, como pode ter um problema de comunicação? É preciso preparo e experiência clínica para perceber essa dificuldade, que afeta grande parte dos autistas.
Muitas vezes na prática clínica, faz-se necessário diferenciar um caso de autismo de um distúrbio de linguagem. Embora as duas condições possam compartilhar muitas das dificuldades descritas, algumas alterações são típicas do TEA, tais como estereotipias verbais (ecolalia, palilalia), inversão de pronomes e falha em atender chamados. Mas além disso, as crianças com TEA apresentam maior prejuízo na interação social e comunicação não verbal, além de dificuldades que não fazem parte da área da comunicação, como comportamentos repetitivos/ ritualísticos ou interesses restritos.
Raquel Guimarães del Monde é pediatra
e psiquiatra infantil na Clínica Crescer.
Foto do topo: Shutterstock
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