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Filho, seu irmão é autista

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“- Filho, vai ter uma sessão de cinema para crianças iguais ao Marcelo. – Autista? – É, filho. Vamos? – Vamos.”

E foi assim que Mariano, meu filho mais velho, falou pela primeira vez que o irmão tem autismo. Esse diálogo aconteceu recentemente. Hoje Mariano, que tem desenvolvimento típico, está com 6 anos e é um menino sério, um pouco tímido e que adora videogame e youtube. Marcelo tem 5 anos, é autista não verbal, também tímido e muito sorridente. A diferença de idade entre os dois é pequena, de apenas 1 ano e 3 meses. As duas gestações foram planejadas e muito esperadas. Engravidei do Marcelo quando Mariano tinha apenas 6 meses. Na minha cabeça, nossa família sempre foi desse jeito (nós quatro juntinhos).

Quando o autismo chegou, eu já era mãe de um menino lindo, que era tudo que eu sempre sonhei. Aos poucos fui percebendo que a vida estava me levando para outro tipo de maternidade. E é assim que eu encaro hoje. A maternidade “azul”, hardcore, convive lado a lado com a maternidade padrão comercial de TV. Eu me divido (ou me multiplico) em duas maternidades tão diferentes, e nós, meu marido e eu, vivemos o grande desafio de criar dois filhos, um autista e outro típico. Não é fácil… O tempo é menor. A grana é menor. A paciência é menor. A disponibilidade é menor. A atenção é menor.

Nos desdobramos entre as rotinas dos dois, o que demanda muita energia porque são rotinas bem diferentes apesar da idade próxima. Falta tempo e falta disposição para um monte de coisas, e a sensação de estar em falta nunca acaba. Gostaria de ser mais presente na vida dos dois, mas tenho convicção de que estou fazendo o possível.

O filho típico, assim como os pais, também tem que fazer seus ajustes e concessões. O amor compensa isso tudo? De modo geral, sim. Mas olhando para os detalhes sei que Mariano está crescendo com algumas lacunas. E só o futuro vai dizer o tamanho desses buracos. Saber, no entanto, que ele está vivendo o mundo real, não uma fantasia, me dá muito orgulho. Isso sempre foi muito importante para meu marido e eu.

Por outro lado, filhos com necessidades tão diferentes te levam a mudar a perspectiva sobre muitas coisas. O filho típico fica, além de mais maduro, mais independente, porque, mal ou bem, ele tem que aprender a se virar sozinho em muitas situações. O filho com deficiência ganha outro olhar nosso, já que conseguimos enxergar que muitas das coisas são da infância, e não do autismo. Há ganhos e perdas de todos os lados. Mas essa é a beleza da vida, não?

A conversa

Nunca chegamos a ter com Mariano a “conversa”, explicando que Marcelo é autista. Ele próprio ligou os pontos e tirou sua conclusão. Falha nossa, talvez. Mas acho que, no final das contas, o rótulo chegou em boa hora, quando o autismo já tinha se tornado menos pesado na nossa casa.

Quando recebemos o diagnóstico, Mariano era muito novo (tinha apenas 2 anos e 9 meses), por isso preferimos dar nossas explicações de forma homeopática, conforme ele ia amadurecendo. De início, simplificamos. “O irmão tem um dodói dentro da cabecinha”. Depois, “o irmão não fala, por isso ele precisa de terapias”. Aos poucos as explicações foram ficando um pouco mais complexas, conforme ele ia crescendo. “O cérebro do irmão funciona diferente”. “O irmão precisa de ajuda para algumas coisas”. “Muitas coisas são difíceis para o irmão”.

De um jeito ou de outro, sempre falamos a verdade, nunca escondemos nada tampouco minimizamos o problema. Mas aos poucos fomos acrescentando algumas doses de realidade, à medida que nós mesmos íamos nos dando conta de algumas coisas. O autismo que parecia leve foi se revelando não tão leve assim. Por isso já estamos começando a falar que a melhora que Mariano tanto espera talvez demore um pouco, e que talvez a fala (sua grande preocupação) sequer chegue. O autismo é difícil pra os irmãos também…

Mariano sempre compreendeu os desafios do autismo mas fala pouco sobre o assunto. Ele tem uma personalidade mais reservada, por isso achamos que ele represa muito dos sentimentos que surgem na sua cabeça. Ele mesmo foi testemunhando nosso sofrimento ao longo desses últimos quatro anos. Em muitos momentos me viu chorando diante das minhas dificuldades em lidar com momentos complicados do Marcelo. Isso pode ter contribuído para ele se fechar.

Faço aqui a mea-culpa, mas não vejo como ser diferente. Não podia eu mesma me fechar e fingir que estava tudo bem quando dentro de mim eu estava em frangalhos. Prefiro ser transparente e que ele me enxergue como pessoa real em vez de uma super-heroína. Não sou super-heroína e não é assim que eu quero que eles me vejam. Prefiro que os dois cresçam testemunhando minhas fraquezas e minhas forças, meus erros e acertos. Esse é o legado que pretendo deixar para eles. Que eles consigam me compreender como ser humano. Se, no final das contas, errei mais do que acertei, que eles possam aprender com os erros da mãe.

Ficamos atentos e conversamos bastante com Mariano, especialmente quando surge uma situação difícil, mas temos consciência de que não podemos poupá-lo de qualquer sofrimento. Essa é a nossa família, ela é desse jeito e estamos juntos “na saúde e na doença”. Eu e meu marido temos muita clareza de que, independente de autismo, não podemos prometer a nenhum de nossos filhos uma vida apenas com alegrias ou prazeres. Sofrimentos e angústias vão fazer parte da vida deles e são muito bem-vindos. O que podemos (e devemos) fazer é estar ao lado deles, para que eles consigam lidar com o que vier da melhor forma possível.

Ajudamos Mariano a interpretar sentimentos, e nunca, nunca, reprimimos o que ele sente. Então deixamos que ele tenha seus momentos de explosão, de frustração, de nervosismo. Hoje ele mesmo pega o fone de ouvido quando o irmão caçula está passando por um momento mais agitado ou de choro intenso. Ele próprio tem a iniciativa de ouvir música ou assistir vídeos, enquanto a gente tenta gerenciar a crise do momento. Esse é o espaço dele dentro do nosso pequeno apartamento caótico e cabe a nós respeitar.

A convivência

Algumas famílias dizem que irmãos são terapeutas naturais. Ajudam, estimulam, ensinam. Isso não acontece com a gente. Marcelo e Mariano nunca foram muito próximos um do outro. Confesso que ter dois filhos grudadinhos e parceiros era um sonho antigo meu (um entre tantos que tive que desfazer para dar lugar à realidade). Mariano nunca teve muito interesse no irmão, o que talvez tenha sido um reflexo da falta de interação social ou da falta de comunicação características do autismo. Qualquer que seja o motivo, eles sempre foram bastante alheios um ao outro. Cada um na sua.

Então estimulamos muito a aproximação dos dois, com muito esforço. Muito mesmo. Percebemos a importância de construir essa relação. Os beijos e abraços que eram raros hoje acontecem de maneira espontânea ocasionalmente. Ainda não é uma explosão de carinhos tampouco uma amizade fraternal, mas temos consciência de que cabe a nós continuar empilhando esses tijolos. Faremos de tudo para essa construção estar de pé no futuro.

Não para Mariano ajudar Marcelo, ou para Mariano estimular Marcelo. Não mesmo. Nosso objetivo é meramente plantar sementes para que eles tenham uma relação bacana ao longo da vida, qualquer que seja o caminho que a vida nos levar. Faria o mesmo se não fosse o autismo.

O futuro

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O futuro? Ah… O futuro… Tento não pensar, mas acabo pensando. Há uma possibilidade de Marcelo não ser autônomo e precisar da ajuda de outras pessoas até o fim da sua vida. Enquanto eu e meu marido estivermos aqui, fico tranquila. Me preocupa o que vai acontecer depois que a gente se for, ou quando não tivermos mais condições de cuidar dele.

Ter Mariano é um alento, mas quero muito que ele saiba que cuidar do irmão é uma opção dele. Se ele entender que cabe a ele a tarefa e se esse for seu desejo, ficarei feliz. Se ele decidir seguir outro caminho (surfar na Austrália, ser enfermeiro na África, consertar carros no Canadá ou mesmo se dedicar exclusivamente à sua vida, sua profissão e sua própria família), ficarei feliz do mesmo jeito.

Essa é uma decisão que cabe a ele, sem julgamentos externos. A vida dele é opção dele. Toda ela. Até lá, me empenharei em mostrar a ele a importância de cuidar daqueles que amamos e a importância de a família se manter unida. Mas não pretendo transformar isso numa incumbência ou num destino. Seu destino pertence a ele.

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– Filho, você é livre! A vida é toda sua para errar e para acertar!

Por Roberta Gonçalves Vasconcelos

(todas as fotos: arquivo pessoal)

P.S: a Roberta participou do nosso Lagarta Vira Papo sobre Maternidade e Autismo. Quer ver? Clique AQUI.

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