A palavra “autismo”, ouvida do outro lado da mesa do médico, ecoa, é dolorosa, traz um luto profundo, tira o chão e parece jogar todos os sonhos pela janela. Contei como vivi esta experiência em um dos primeiros posts do blog.
Por que “luto”? Luto é a tristeza profunda pela morte de alguém próximo. Aqui, não estamos tratando de uma morte física, mas da morte mental do filho idealizado. Aquele que achávamos que viria. Que pensávamos que ia estudar no colégio X, ir aos jogos de futebol do time do coração com o pai, fazer um milhão de coisas que já planejamos antes mesmo dele nascer.
Estamos errados? Somos humanos. Pessoas idealizam tudo: outras pessoas, relacionamentos, situações. Com o tempo (e as lições da vida), talvez, aprendamos a idealizar menos.
A psicologia diz que o luto tem 5 fases: a negação, a raiva, a negociação, a depressão e a aceitação. A velocidade com que cada um passa pelas fases é extremamente particular e depende da bagagem individual. Algumas pessoas só chegam à aceitação com ajuda extra. E isso também é normal. Também é ser humano.
Saímos daquele consultório quebrados, sem chão, em choque, quase como quem sai de um acidente. Ouvimos do médico que nosso garotinho – que, então, tinha quase 2 anos – era, provavelmente, um caso de autismo atípico ou asperger. O prognóstico era bom. Nada de “autismo clássico” (que seria o autismo moderado a severo da época). E foi nessa informação que me agarrei com todas as forças para sair mais rápido do luto que me sufocava.
Segundo luto
Há uns 3 anos, ouvi de uma amiga querida que o autismo tem 2 lutos. O primeiro vem com o diagnóstico. O segundo vem em torno dos 5 ou 6 anos de idade da criança.
A explicação – em que não prestei muita atenção à epoca – faz sentido. Toda criança diagnosticada com autismo precocemente ainda é muito bebê. Theo era um bebezão bochechudo quando saímos do consultório do neuro. E, a não ser em casos extremamente severos, quando você compara um bebê autista de 2 anos aos outros da mesma idade, a diferença não é tão abissal. Tanto que pediatras perdem os sinais. Professores também. Pais (como no meu caso) deixam passar.
Aos 5 ou 6 anos de idade é que dá pra ter uma real noção do quadro. A realidade é nua e crua: existem crianças não verbais aos 2 anos que não possuem transtornos do desenvolvimento. Apenas tiveram um atraso de fala vai passar, talvez até sozinho. Aos 5 ou 6 anos, ser não verbal indica claramente algo sério. E não é só com a questão da fala, mas com vários outros comportamentos. Quando você compara um autista moderado a severo com seus pares da mesma idade aos 6 anos, a ficha cai. A diferença é muito grande para não ser notada. E é aí que chega o segundo luto.
Ouvir do mesmo médico que disse que Theo era autista leve que, aos três anos e meio, “a fala já deveria ter saído mais”, me acendeu o primeiro alerta. E a ficha foi caindo aos poucos ao ver que, mesmo com terapias intensivas e muita estimulação, os ganhos estavam vindo em ritmo bem lento em comparação com outras crianças autistas que eu conhecia. Eu estava vivendo o segundo luto.
Existem outros? Como ficamos?
Acredito que ainda podem existir outros lutos. Quando, por exemplo, os pais percebem que o filho não vai mesmo falar. Ou quando descobrem alguma comorbidade séria (como outra síndrome).
Aqui, só posso falar por mim: eu sobrevivi ao primeiro, sobrevivi ao segundo e estou sobrevivendo ao terceiro. Isso porque não acredito que o Theo vai vir a falar. Muito provavelmente, ele está na estatística dos 25% de autistas que são não verbais. Se vier a falar, ótimo! Mas não coloco minha felicidade baseada nisso. O importante é que ele ache uma voz, uma forma de se comunicar, e estamos no caminho certo.
O que aprendi com a minha experiência é justamente a idealizar menos. Porque, sim, mal caímos do cavalo e lá estamos nós idealizando de novo! No meu caso, foquei no tal “autismo leve”, pensei até que meu filho poderia ser um gênio da física, tudo para cair do cavalo novamente mais à frente.
Só deixando claro: não há mal nenhum em querer que seu filho recém diagnosticado seja autista leve. Que fale. Isso é normal e, em certa dose, saudável, para que corramos atrás dos estímulos necessários. O que não devemos fazer é colocar toda a nossa felicidade dependendo disso. Toda a nossa realização baseada em algo que pode não se concretizar.
E, para encerrar essa parte, o que acontece é que vamos ficando mais fortes após a primeira pancada. Isso faz parte do processo. Uma criança autista ou com outra deficiência promove profundas mudanças em seus pais. Aprender a relativizar o que chamamos de “problema” é uma delas. Aprender a não cair tão fácil com os tropeços da vida também. Fica mais fácil porque ficamos mais fortes.
Impossível não lembrar daquele meme do “Já acabou, Jéssica?”. 🙂
Autismo leve?
Uma coisa que eu noto é que a maioria absoluta das pessoas que me procuram no blog dizem que seus filhos são “autistas leves”. Ainda tento entender o que acontece. Afinal, ou os pais estão enganados, ou o Brasil é o país com o maior número de autistas leves do mundo.
Uma hipótese que eu levantei é que os médicos diagnosticam a maioria das crianças novinhas como autistas leves por duas razões:
Por quererem dar um “alento” aos pais que acabaram de receber um diagnóstico tão difícil
Por precipitação. Afinal, como eu já falei lá em cima, uma criança de 2 anos ainda é muito bebê. Como ela vai se desenvolver até os 5 ou 6 anos é que vai determinar o grau de autismo.
Falar de grau de autismo é uma coisa complicada. Sabemos que é um espectro e as condições de cada um são realmente particulares. Mas eu gostaria de dividir com vocês o que entendo por “autista leve” após 5 anos nessa trajetória. Para começar, no último DSM, tudo virou autismo (leve, moderado ou severo). Não existe mais o antigo “asperger”. Se eu concordo ou não, não vai fazer diferença. 🙂
Mas voltando: o que EU considero como autista leve é a criança que tem maiores possibilidade de ter vida independente no futuro. E ser independente envolve desde saber se comunicar a saber se vestir, se banhar, ir ao mercado, se alimentar, lidar com dinheiro…a lista é grande.
É um espectro? Sim. Mas, só como exemplo, dificilmente vamos encontrar um autista leve que seja não verbal. Normalmente, os quadros de autismo leve não apresentam atraso de fala significativo. Portanto, no meu achômetro, acredito que, salvo raras exceções, os médicos não deveriam dizer o grau de autismo de uma criança aos pais até ver como (pelo menos) a linguagem funcional vai se desenvolver.
Importante lembrar: “falar” é diferente e “se comunicar”. Para alcançar a independência, uma das coisas mais importantes é que o indivíduo saiba se comunicar.
Pra encerrar…
O diagnóstico de autismo marca renascimentos: acordamos para uma nova criança e, se soubermos permitir, ela vai guiarnos à nossa própria reconstrução.
Theo me fez mais forte, menos mimizenta, mais solidária, menos preconceituosa.
Theo me ensinou onde está a verdadeira felicidade, e não é em ter um filho “típico”, ou “gênio da física”. É em sabermos tirar o melhor da vida que temos. É em saber aceitar o que vier e lidar com isso da melhor forma.
Os lutos vão. Os aprendizados ficam. Com amor e resiliência, a gente supera tudo.
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Foto: Shutterstock
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